TERCEIRO CAPÍTULO

15/05/2013 20:17

 

Hellen caminhava de um lado para o outro no laboratório no IML. Esperava o corpo do periciado que estava sendo lavado para dar inicio a necropsia. Estava com os pensamentos a mil. Perplexa com as ultimas descobertas e a forma como chegou a elas ainda lhe prendiam a respiração. É inacreditável! Hellen pretendia contar a Aroldo sobre a descoberta da jovem que atendia pelo nome Sarah e como chegou até ela. Procurava organizar as ideias para contar da melhor forma possível de modo a não parecer ridícula. Já havia tentado ligar inúmeras vezes para Aroldo, mas as chamadas eram encaminhadas para a caixa postal. Há poucos minutos ela entrou em contato novamente com Sarah e a mesma confirmou que já estava a caminho do IML.

A única ideia que Hellen tinha em mente era que o periciado tivesse codificado outros detalhes em suas tatuagens que pudessem levar aos responsáveis pelo assassinato. Também estava convencida que Sarah pode ajudar bastante, pois a segunda parte da frase no pé da vitima dizia que deveriam seguir os passou da moça.

- Doutora Hellen, está o corpo já foi higienizado! Disse o enfermeiro que entrou na sala.

Hellen saiu em direção ao laboratório de necropsia faminta pelo mistério que rondava o caso. O enfermeiro que ajudava nas necropsias lhe acompanhou. Assim que entrou, no entanto, Hellen parou sem ação e ficou observando detalhadamente o corpo limpo e que permitia enxergar com mais clareza cada tatuagem do rapaz. Se aproximando, colocou as luvas e a máscara no rosto. Estava fascinada e totalmente envolvida com o caso. Os desenhos gregos saltavam-lhe nos olhos como as pedras preciosas que ela costumava ver nas sofisticadas joalherias que frequentava.

- Deixe-me só com o periciado! - Disse ela ao enfermeiro por cima dos ombros. – Informe na recepção que chegará uma pessoa para me ver. Peça para que me chame por gentileza. É muito importante para mim.

O rapaz arqueou as sobrancelhas e saiu de ré sem nada a dizer. Hellen se via diante de um quebra cabeça humano genialmente preparado pela própria vitima. Ele se fez jogo, jogador e pistas de uma forma fantástica. Hellen tocava a pele do periciado como uma criança entretida numa caixa de brinquedo. Cada detalhe dos desenhos lhe prendia por alguns minutos. Afinal, ali poderia estar contida mais uma charada.

Meia hora depois, alguém bateu na porta e Hellen ainda não tinha tido grandes avanços. Era o enfermeiro voltava, mas estava acompanhado.

- Doutora, me desculpe em interrompê-la, mas é que chegou a pessoa que a senhora disse estar esperando.

Os olhos brilhantes de Hellen admiraram a jovem alta, com o cabelo em tranças e usando provocantemente uma blusa preta de costas nua na companhia do enfermeiro. Uma bolsa de renda florida de lado e uma sandália rasteira davam um aparência hippie à moça. Pelos vários desenhos nos braços podia se perceber que também era uma amante de tatuagens. A jovem constrangida se aproximou:

- Doutora Hellen, certo? Prazer, Sarah Régia, agora pessoalmente. Disse a moça com um sorriso nada a vontade.

- Com licença. Disse o enfermeiro saindo.

- Queira me acompanhar por gentileza Sarah.

Hellen conduziu a moça até sua sala. A cabeça estava cheia de questionamentos. Assim que entraram na sala, Hellen puxou uma cadeira e gesticulou para que Sarah sentasse. A jovem visivelmente tensa.

- Estou preocupada. Falou-me que talvez o corpo que encontraram seja do David. Tentei entrar em contato com ele por celular, mas não consegui. Espero que ele tenha mudado de número para que a senhora não esteja certa.

- Ele se chama David então?

- Sim, a gente namorou um tempo. Mas estávamos sem contato uns meses. Mas me conte como você chegou ao meu número eu não entendi nada pelo telefone. Disse que meu número estava codificado em uma tatuagem de um corpo?

- Acho melhor que você mesmo veja. – Hellen hesitou – Espero que seja forte. O que vai ver não é algo muito comum.

Sarah aquiesceu meio incerta. Em seguida Hellen deu à jovem as roupas e equipamentos necessários para que ela pudesse entrar devidamente no laboratório. A jovem estava suando frio. As duas entraram no laboratório. A porta rangeu atrás delas se fechando. A moça se deteve imóvel próximo a porta e Hellen alguns passos adiante esperou que ela acompanhasse. Mas ao ver as lágrimas nos olhos da moça entendeu o peso daquele momento para ela. Silêncio por algum instante.

- É o David! Disse Sarah com a voz esganiçada.

Sarah estava trêmula. Não conseguia dar um passo adiante. Na maca, sob uma luz especial, estava o corpo do rapaz que um dia planejou casamento. Ele estava perfeito, como se dormisse. Pouco-a-pouco ela foi se aproximando e mais emocionada ficava. Agora ela estava somente alguns centímetros do corpo, e em silencio Hellen respeitava a dor do momento. Alguns instantes depois, o choro havia se tornado um continuo soluço. Somente assim Hellen quebrou o silêncio.

- Eu sei o quanto é duro. Parece que você gostava muito dele não é?

- Ele seria o meu marido doutora.

- Eu entendo. Mas ele gostava bastante de você também. Afinal, eu creio que de alguma forma ele sabia o que iria acontecer e deixou tudo preparado para que chegássemos a você. Imagino que para ele você era a única pessoa confiável.

- Como assim?

- Vou lhe explicar como cheguei a você Sarah. E David foi o responsável por isso. – Falou Hellen colocando as luvas nas mãos. - Assim que vi o corpo notei que as tatuagens todas tinham uma temática grega.

- Ele era um amante da cultura greco-romana! Completou Sarah.

- No entanto, um desenho somente não se encaixa no padrão das outras. – Hellen apontou para o punho – Veja! Uma esfinge egípcia. Abaixo dela essas palavras: Sois sábios! Que as marcas de meus pés te mostrem o primeiro passo.

Sarah cerrou o cenho atenta a explicação.  Hellen continuou com um tom de voz compassivo.

- Entendi que isso fosse uma charada, porque culturalmente as esfinges são personagens que desafiam viajantes com charadas. A frase fala de marcas dos pés.

- Ele poderia estar falando de pegadas!

- Ou então estar falando ao pé da letra. Ele poderia estar querendo dizer que essas marcas poderiam ser desenhos, ou melhor, uma tatuagem. As marcas dos pés ele estava querendo indicar uma única tatuagem no pé. E o que eu encontrei no pé?

Hellen apontou para as onze palavrinhas gregas no pé de David.

- Onze palavras novamente em grego. E outra frase, que a principio imaginei ser uma tradução. Aqui diz primeira de Abraão e única minha, sigam suas pegadas e estarão no caminho certo. As palavras em grego na verdade eram números. Descobri isso com ajuda de um amigo que traduziu as palavras. A sequência numérica era seu número de telefone. Após ligar e ouvir seu nome eu tive a certeza que não era coincidência, pois a primeira mulher de Abraão tinha sido Sara também e você para ele era a única.

Sarah mordeu os lábios e seus olhos encheram de lágrimas novamente. Chorou por mais alguns instantes pela forma como David havia se referido a ela na frase.

- Imagino que você pode nos ajudar não é Sarah?

- Mas como doutora? Eu nem sei o que dizer agora! Isso tudo é tão... tão fora do normal!

- Ele disse que devemos seguir suas pegadas. O que ele queria dizer com isso?

- Eu não sei doutora! Eu não sei!

Sarah deu de ombros e saiu correndo da sala aos prantos. Hellen o acompanhou até o corredor ante a sala onde ela se se encostou à parede e chorava inconsolável. Hellen nunca tinha lidado como uma situação semelhante. Não sabia como reagir diante dessa situação que já estava extrema demais. No entanto, se aproximou da jovem e colocando a mão em seu ombro tentou confortá-la.

- Eu acredito que está sendo duro. Mesmo que você não saiba o que David quis dizer com aquilo, imagino que pode nos ajudar na investigação do caso.

- Hellen! Disse alguém após pigarrear vindo pelo corredor.

O investigador da equipe de criminalística que cuidava do caso, demostrava imensa preocupação em seu rosto. Quando Hellen o encarou já tinha certeza que ele não trazia uma notícia muito agradável.

- Com licença. – Disse Hellen – Beba um pouco de água, acho que pode ajudar.

Hellen afastou-se com o investigador e logo perguntou:

- Aroldo já estar por aqui? Preciso falar urgente com ele, mas não consigo pelo celular.

- Não ele não está. E certamente não virá mais.

Hellen soltou um riso desconcertado.

- Como assim?

- O caso foi tirado da nossa equipe. Decisões do Decap! Fomos informados agora pouco da mudança.

- E quem cuidará do caso agora então?

- Letícia Monteiro, o ogro de salto alto!

O nome causou surpresa em Hellen. Conhecida pela atuação em casos de grande repercussão no DHPP, o nome da delegada se tornou notório não somente pela fama de solucionar casos indecifráveis como também pela personalidade forte e gênio insuportável.

- Mas porque essa mudança assim do nada? O que justificaram?

- Não se sabe. - O investigador suspirou com pesar. – Você sabe, manda quem pode obedece quem tem juízo. É uma decisão do Decap e você pode que decisão deles é algo inquestionável.

Hellen nem deu atenção à despedida do investigador. A novidade tinha lhe chamado a atenção. Aroldo era um homem com prestígio e respeito no meio policial. Certamente, os motivos que levarão à inesperada troca tinham sido muito relevantes. Logo agora que Hellen tinha uma grande carta na manga isso teve que acontecer.

- Sarah, preciso que confie em mim. Espero que esteja mais calma para conversarmos.

- Eu não sei se tenho cabeça doutora.

- Vamos à minha sala.

Sem hesitar Sarah seguiu conduzida por Hellen até a sala. Mas antes que a médica pudesse cruzar o limiar da porta, foi atraída pelo som de sapatos apressada pelo corredor. Virou o pescoço e logo reconheceu a mulher se aproximando com um ar esnobe. Era Letícia Monteiro.

- Entre e sente-se. Espere um pouco. Disse Hellen fechando a porta e ficando de fora.

- Imagino que seja a doutora Hellen Lobato! Disse Letícia se aproximando.

- Sim sou eu.

A hostilidade ficou no ar. Nem um aperto de mão a delegada propôs. Hellen se sentiu sufocada com a soberba que aquela mulher suspirava. Somente a sofisticação e o brilho dos cabelos negros poderiam receber a admiração de Hellen.

- A você ficou incumbida o exame de necropsia do corpo encontrado na Praça da Sé correto?

- Sim, eu já estou...

Letícia a interrompeu mostrando pouco interesse em escutá-la.

- E então que resultado já teve?

- Bem, nós ainda não concluímos o exame.

Letícia o encarou friamente. Após consultar o relógio no pulso esquerdo disse cerrando os dentes.

- Entendo doutora. É como deve tá sabendo eu fui nomeada para tomar conta desse caso. Não sei qual o ritmo que vocês trabalham com o Aroldo, mas sei que é totalmente contrário ao meu. Espera que o corpo fale sozinho?

Ele já estava falando demais! Pensou Hellen já decidida em não compartilhar nada de suas descobertas à Letícia.

- Certamente não Letícia.

- Me chame de doutora. Devo lembrar que a única que tem doutorado aqui não é só você.

Hellen ferveu por dentro. A mulher diante dela não fazia o menor esforço para esconder a arrogância. Hellen respirou fundo e soltando o ar disse:

- Me desculpe... Doutora Letícia. Mas como lhe dizia, agora que iria começar o exame.

- Não precisa mais. Vou solicitar outro legista. Alguém mais profissional.

- Desculpa, não entendi?

- O que você não entendeu? É simples, solicitarei que o exame de necropsia seja conduzido por outro perito! Eu gosto de trabalhar com rapidez minha cara, e desde já percebi que você não se encaixa em meu ritmo. Não sei como trabalhavam com Aroldo, mas comigo o negócio é diferente.

- Mas isso é um absurdo! Disse Hellen deixando escapar seu sentimento inconformado.

Ao ouvir o protesto de Hellen, Letícia fitou-lhe um olhar metralhador.

- Eu não considero um absurdo minha cara. Se eu fui nomeada para cuidar desse caso, nada mais natural que eu decida quem fará o exame de necropsia. E com agilidade! Eu já li alguns relatórios sobre o caso...

- Relatórios? Terminamos de coletar o material a menos de quatro horas é impossível que haja algum documento pronto... Como assim já leu alguns relatórios?

- Acredito também que essa é uma informação que eu não deva a menor satisfação a você, não é?

Hellen preparou-se para responder Letícia à altura, no entanto o toque do celular da delegada malogrou sua atitude.

- Pode falar. Disse Letícia ao telefone com um tom ríspido.

Durante os minutos que Letícia estava ao telefone, Hellen ficou observando-a dos pés à cabeça. Muito se comentava nos bastidores policiais sobre a fama daquela delegada, no entanto ela não imaginava que fosse tão real o que se falavam da soberba e arrogância que ela tinha.

- Bem, fui informada que já apareceram dois familiares reivindicando o corpo. Parece ser a mãe e uma irmã. As duas viram as uma matéria na TV e reconheceram pelas tatuagens. Elas já estão vindo para cá.

A notícia não soou nada confiável nos ouvidos de Hellen, no entanto não questionou nada, pois tinha certeza que receberia mais uma sessão de arrogância de Letícia.

- Enfim, faça-me somente o favor de deixa corpo pronto para o próximo médico examinar as causas e em seguida o corpo será liberado para os entes. Com sua licença.

Letícia saiu da presença de Hellen deixando-a imensamente furiosa. Quando entrou na sala a doutora já não sabia o que fazer. Tinha uma informação do qual seria em vão partilhar com a nova delegada encarregada do caso. Hellen suspirou fundo sem entender muito o que estava acontecendo. Em menos de três horas coisas inexplicáveis tinham acontecido e ela estava se sentindo perdida em tudo.

- Você está bem doutora? Perguntou Sarah vendo a palidez da médica junto a porta.

- Sim estou. Fale-me sobre os familiares de David.

- Até onde sei, a mãe dele morreu quando ele era inda criança. Já o dele não mora em São Paulo. Morava em Brasília, mas os dois não tinham um bom relacionamento e tão pouco contato um com o outro. Mágoas do passado.

- Ele não tinha nenhum irmão ou irmã aqui na capital?

- Não, ele era filho único. Mas porque essas perguntas?

 Tem algo errado nessa história! A névoa de mistério que rondava o caso tinha ficado mais densa diante das informações de Sarah que negava a existência de familiares de David. Se súbito ocorreu uma ideia na cabeça de Hellen. Em instante a médica saiu da sala e entrou no laboratório. Estava agindo quase por instinto, quando pegou o celular e tirou fotos de todos os ângulos do corpo de David. Em seguida, com grande esforço, devolveu o corpo de David ao bolsão e colocou no grande freezer onde os corpos sem identificação ficam por 15 até serem encaminhados para uma Secretaria especializada do Ministério Público. O mais surpreendente, no entanto a médica fez em seguida. Retirou do mesmo local outro cadáver e substituindo por David o deixou preparado para o próximo médico. Era arriscado aquilo que ela estava fazendo. Mas no íntimo de seu sentido feminino, ou até mesmo como um aviso sobrenatural, era aquilo que ela sentia que deveria fazer.

 

 

 

 

 

 

O escritório muito bem mobiliado com peças rústicas revelava o bom gosto de seu dono. Ele ouvia Edith Piaff enquanto digitava um e-mail em seu computador. O cheiro de cravo adocicado estava impregnado no ar. Esse cheiro era típico do Djarum Black, ou kreteks, seus cigarros prediletos. Seus olhos estavam vidrados na tela do computador. O brilho do visor unia-se ao brilho natural de seus olhos castanhos e davam um ar visionário e sombrio. Sua mente trabalhava cautelosa articulando um plano do qual ele daria a vida para executar. Embora houvessem ainda alguns riscos, ele estava convencido que tudo daria certo. Quando seu celular vibrou sobre a mesa e ele viu o nome da pessoa que lhe ligava no visor, teve certeza que as coisas estavam correndo bem.

- Alô? Disse com a voz suave.

- Eu estou no IML. As informações que precisava a respeito do corpo estão comigo. Posso já afirmar que o nosso empecilho foi tirado de jogo! Disse uma voz feminina.

- Eu sabia que você era a pessoa perfeita para isso. Eu acreditei que você poderia fazer algo em nosso favor. A Irmandade será fiel a você, se fores fiel a nós.

- Obrigada.

- Alguma coisa sobre a tal “grande-obra”?

- Ainda não. Mas sei como posso pegar essa informação.

- Eu acredito que sim. Estarei a espera de suas informações. Ninguém pode nos deter. Tertia, quae caderbant!  

- Fides et servitute!

 

 

 

 

Quando Hellen retornou do laboratório estava ofegante e mais pálida ainda. Sarah percebeu que a médica estava em um estado nervoso alterada, mas lutava para manter o equilíbrio.

- Sarah eu preciso de você mais do que nunca agora.

- Como assim?

- Tem muita coisa intrigante nessa história. Acredito que a morte de David não tenha sido causada por um simples incidente. Deve ter alguma coisa a mais. Pode vir comigo?

- Eu não sei se seria uma boa ideia.

- Seu namorado foi assassinado. Ele deixou claramente uma pista que nos levou até você e ainda disse que devemos seguir seus passos. Não acha que tem algo estranho nessa história?

As duas trocaram um olhar, Sarah não pode contestar a médica. Mas estava confusa e insegura com a situação. No entanto, concordou em acompanhar a médica.

- Para onde vamos?

- Solucionar esse caso.